Cuidados com a adolescência durante a pandemia

21 março, 2023

O que pudemos fazer pela saúde bio-psico-social do adolescente durante a pandemia?
Durante a 4ª semana de isolamento ocasionada pela pandemia de Coronavírus, em abril de 2020, dei uma entrevista para a jornalista @Dayane Santos sobre os cuidados necessários com os adolescentes. Naquele momento estávamos todos ainda muito confusos e assustados diante da catástrofe que se anunciava e não sabíamos quando e como se configuraria o cenário pós-pandemia, mas eu já refletia que para o universo do adolescente era fundamental garantir estratégias de relacionamento entre pares e o despertar dos sentimentos de solidariedade e enfrentamento comunitário como formas de amenizar os danos que a impotência, a contenção física, a desesperança e a revolta fatalmente trariam.
Ao retornarmos para a escola, em algumas instituições já no 2º semestre de 2021 e em outras somente em 2022, colhemos os resultados. Imaturidade social e afetiva, intolerância à frustração, hipersensibilidade emotiva, ansiedade, depressão, lacunas gigantes de repertório acadêmico, privação material extrema para muitos, luto e uma grande desesperança no futuro. Novamente acredito que é pela relação social solidária, responsável, pelo desenvolvimento do sentimento e prática da alteridade, pela curiosidade pelo mundo e pela fé no futuro que poderemos propiciar à essa geração ferramentas para que caminhem no sentido de uma sociedade mais humanista, comprometida com o meio ambiente e responsável por suas escolhas e colheitas.https://www.youtube.com/watch?v=bgQZqVuRxRA


 

A curiosidade do aluno e o uso de ferramentas digitais na escola, sob a ótica da psicanálise

10 março, 2023

A relação entre a curiosidade, os jogos, as redes sociais e os aplicativos de inteligência artificial na escola

 

Recentemente um diretor de escola me perguntou: como lidar com os aplicativos de inteligência artificial, mais especialmente os de produção textual?

A resposta para essa questão me parece simples: é preciso investir fortemente na curiosidade e na singularidade da criança e do adolescente na construção do seu processo de aprendizagem. Sua execução, porém, é extremamente complexa.

Pensando psicanaliticamente, a curiosidade, a pesquisa e o desejo de saber são elementos cruciais para o desenvolvimento psíquico, emocional, físico e intelectual de todo ser humano. Inicialmente é a curiosidade sobre o corpo, sobre a sexualidade e sobre o outro que mobiliza o sujeito. A percepção e a frustração sobre o que falta, impulsionam uma busca, não sem antes estabelecer-se hipóteses. Parte-se sempre do que já se sabe, ou do senso comum.

Tomemos como ponto de partida os processos inconscientes mais primários descritos por Freud, como o princípio de prazer, que afasta de processos aflitivos e procura satisfazer, de maneira alucinatória, as necessidades internas, através da ilusão de autossuficiência. É somente na ausência de satisfação pela via alucinatória e a impossibilidade de aquietar sozinho as fontes de ansiedade e frustração que é possível fazer o psiquismo abandonar essa via de satisfação, impulsionando uma concepção sobre as circunstâncias reais do mundo externo e um esforço para alterá-las. Um novo princípio do funcionamento mental é assim introduzido: o princípio de realidade. (Freud, 1911-13/ 2002).

Esses são mecanismos psíquicos essenciais para a construção, na escola, da relação com o conhecimento e dos vínculos sociais que se estabelecem com educadores e colegas.

A educação, nesta concepção, é um incentivo à conquista do princípio de prazer e à sua substituição pelo princípio de realidade e maneja, para este fim, a oferta de amor dos educadores. Já a arte propicia a reconciliação entre os dois princípios, permitindo a relação com a realidade, pela via da fantasia. “O processo de criação narrativa é a transformação do demônio em tema”, corrobora Montero (2004), acrescentando que toda arte é a busca dessa beleza capaz de engrandecer a condição humana.

Mas o que move a curiosidade do aluno na escola?

Na chegada da criança é o investimento do professor que maneja sua própria curiosidade sobre sua turma que desperta o interesse da sala e de cada aluno, estabelecendo assim uma curiosidade mútua. O objetivo fim dessa estratégia é instaurar o interesse do aluno pelo conhecimento, pelos processos de aprendizado que o professor propõe e a tradição que representa, mas esse percurso exige etapas.

Reconhecer a curiosidade do aluno é compreender as disponibilidades dele para o aprendizado, encontrando as trilhas de acesso que permitam que o desejo da criança e do adolescente se conectem também com a escolarização. A curiosidade é o afeto que mais permite deslocamentos na sala de aula, faz sair da rotina, instaura o ciclo da aprendizagem: ficar curioso – estudar – sanar sua curiosidade – ir atrás de outras.

Para reconhecer essa curiosidade o professor observa o brilho nos olhos, o interesse pelo desafio, a criação de hipóteses e a mobilização para comprová-las, num movimento que é coletivo, já que todos se encontram na temática, mas que também deve ser singular, ou o lugar que cada aluno ocupa na configuração da identidade da sala na relação com o conteúdo proposto e as estratégias didáticas implementadas. A dinâmica da curiosidade move a capacidade de inferência, a criatividade, o livre acesso ao campo imaginário e a coragem motivada pela ingenuidade. Para serem curiosos, professores e alunos precisam ter, a princípio, a sabedoria sobre a incompletude, que instiga o sentimento de que ainda falta algo para saber. É preciso, portanto, instigar as narrativas incompletas, explorar as contradições, se encontrar com as várias versões, interpretações e visitar a polissemia das palavras. O non sense, o chiste e o duplo sentido divertem e mobilizam o aluno para se interessar pelo que o professor está dizendo sobre aquele assunto. Ativa-se mais facilmente a curiosidade quando se criam possibilidades de experimentação e acionam-se outros sentidos como o tato, o paladar, o olfato e a propriocepção.

A curiosidade se dá também a partir de links inconscientes com questões anteriores da própria criança. Relaciona o corpo e dialogicamente mobiliza o desejo do professor por também estar ali, curioso por vivenciar, junto com a criança, o processo.

O paradoxo é que a dinâmica da escola, ao invés de reforçar essa força motriz, estraga esse movimento, fazendo a criança perder o interesse, especialmente pelos processos avaliatórios instaurados que ditam o tempo da escola e o fazer na sala de aula. Falta espaço e tempo na escola para a escuta das curiosidades da criança.

A escola também representa o que o mundo adulto separou da fortuna crítica produzida para ofertar às próximas gerações como herança e nesse sentido é um ato de amor de uma geração para outra, uma aposta no futuro. A criança é curiosa sobre esse amor que temos para ofertá-la, porque são curiosas pelas relações de amor. Mobilizar a curiosidade infantil fatalmente passa por propiciar momentos de prazer com os processos escolares, seja superando um desafio, seja analisando, descobrindo e corrigindo seus próprios erros. A escola precisa ser instigante e instigar na criança o desejo pelo autoconhecimento e o conhecimento sobre o mundo e sobre o outro.

Se a curiosidade é desejo, ela é sexualidade. Mobiliza a excitação do corpo e da mente, mas sempre sucedida da reflexão sobre esse processo, instigando o interesse por sua própria maneira de pensar e de agir. É evidente o exercício da sexualidade infantil no contexto escolar, seja a curiosidade bruta sobre seu próprio corpo e o corpo do outro, as diferenças e semelhanças, seja a sexualidade na relação, expressa na quadra de esportes, nos escritos dos banheiros, dos tampos das mesas na sala de aula. A sexualidade também aparece na competitividade e no quantum de agressividade que cada criança e adolescente comporta, dentre tantas outras formas de expressão. A sexualidade é matéria-prima da curiosidade e a escola não pode ignorar o seu manejo rumo aos processos civilizacionais de cumprimento das normas e exercício da alteridade, que não devem se confundir com a repressão, porque o conhecimento se consolida melhor no trânsito do desejo, não na sua repressão. A curiosidade da criança chega pelos sentidos sensórios e afetivos e é no estímulo do adulto que se transforma em pensar, em falar, em linguagem.

Não existem fórmulas prontas para despertar a curiosidade da criança na aula. O professor deve ter domínio sobre seus objetivos e não burocratizar a relação com o conhecimento. O manejo da curiosidade é a base para construção de um repertório, a partir dos princípios, dos saberes essenciais que a criança traz e como ela relaciona essa sabedoria com a ofertada pelo professor. A instituição precisa favorecer esse processo. É importante que a escola seja flexível, disponível para se mobilizar pela curiosidade da criança. Uma temática proposta pelo grupo de alunos tem que ser capaz de alterar a sequência didática, o projeto, para abarcar esse movimento. A gestão deve estar curiosa sobre as novidades, as tecnologias, as estratégias educacionais que podem fomentar a curiosidade na escola, a discussão, promovendo uma relação mais autoral do professor com as estratégias institucionais empregadas e dos alunos com as temáticas propostas.

Acontece que a curiosidade da criança não é formatada para os conteúdos escolares e existem dificuldades multicausais para que possa vir a ser. Uma das dificuldades é relacionar aquilo que eles aprendem, com aquilo que eles afirmam ter interesse. Essa lacuna pode se originar na própria alienação dos educadores em relação ao processo de ensino. Não saber por que está ofertando determinados conteúdos em detrimento de outros, não entender por que a grade é constituída por tais e tais aulas, não observar como sua sequência didática repercute no grupo. Essa alienação, que envolve todos os atores da escola, é uma violência com profissionais e com os alunos. Pode se originar também na medicalização excessiva da infância, que retira do aluno o desejo que sempre está associado a excitação física e psíquica. Também é tema para reflexão o próprio desconhecimento e/ou incompreensão da equipe escolar sobre as estratégias que mobilizam o prazer e a curiosidade da criança como manejo pedagógico.

Mas como a curiosidade e a criatividade do aluno se relaciona com as redes sociais, com jogos online e com aplicativos de inteligência artificial?

Segundo Santi (2020), novas formas de constituição da subjetividade, novos sintomas e novas estratégias de apreensão do mundo estão instauradas nesse século XXI, bem diferentes daquelas que estruturaram os próprios educadores e os autores que os formaram.

O autor reflete que as manifestações sintomáticas que vemos na contemporaneidade (e a escola é um microcosmo da sociedade) não estão necessariamente atreladas aos mecanismos repressivos do início do século XX, gerando personalidades histéricas, ou obsessivas, ou psicóticas, ou perversas, dentre outras possíveis classificações, a depender da referência teórica. O que temos visto com cada vez mais frequência tanto nos consultórios, quanto na comunidade escolar, são crianças e adolescentes mais narcisistas que o esperado para a faixa etária, mais adictos dos celulares, tablets e computadores, assim como de drogas diversas (álcool, cigarros eletrônicos, maconha e não menos frequente, de medicações psicotrópicas atuantes no sistema nervoso central) e portadores de psicopatias diversas relacionadas ao comportamento social. Isso não significa que o avanço enorme da tecnologia e da medicina psiquiátrica que tivemos nos últimos 50 anos seja preponderantemente nociva para a criança e o adolescente, mas é notório como esse avanço encurta processos, impedindo que o sujeito em formação desenvolva as suas próprias ferramentas afetivas e cognitivas para solucionar os desafios sociais, cognitivos e emocionais da sua realidade.

Uma rede social pode significar a única possibilidade de um adolescente muito tímido e embotado afetivamente conseguir fazer amigos e se relacionar socialmente, por outro lado, é uma bomba explosiva na aceitação e conciliação com o próprio corpo e no estabelecimento de relações mais calcadas no real da vida, na qual todos têm qualidades e defeitos, potencialidades e dificuldades, características físicas diversas, dias bons e dias ruins. O mundo das relações virtuais e do consumo dessas relações não admite o real da existência, não impõe os limites e combinados civilizatórios essenciais, banaliza toda forma de dor e de amor, de injustiça e de solidariedade, não amplia os níveis de tolerância a frustração e instaura no sujeito tempos cada vez mais curtos de reflexão crítica e de ação criativa, ao mesmo tempo em que paralisa o corpo e anestesia a sensibilidade e os sentidos.

Os jogos online, por sua vez, ofertam um mundo que possui início e fim, possui regras determinadas e possui um tema de interesse mútuo previamente combinado entre todos os participantes, ou seja, oferece o conforto psíquico das angústias da vida, ao cumprir a promessa de autossuficiência na satisfação libidinal, além de ser um facilitador de relações sociais e permite que o sujeito controle a sua presença nesse mundo, saindo e entrando quando quiser (SANTI, 2020). O problema é que, assim como as redes sociais, vicia e obnubila a percepção do que é o mundo real e o que é o mundo fantasmático.

Por fim, para nos atermos aos três grandes universos virtuais que têm capturado crianças e adolescentes, temos os sites e aplicativos de inteligência artificial. Como toda tecnologia, o objetivo da ferramenta é encurtar processos e potencializar resultados, ou seja, diminuir o trabalho humano, otimizando o ganho. Tem sido assim desde a invenção das ferramentas de caça e agricultura, até o ChatGpt e todas as outras ferramentas tecnológicas disponíveis, em todas as possibilidades do ser humano produzir mudanças na natureza e na sua própria natureza. A tecnologia na produção do conhecimento é boa, útil e necessária para a contemporaneidade. Grandes pesquisadores fizeram grandes descobertas e transformações antes do advento da internet, pela via da disciplina, persistência e genialidade. Pesquisar, hoje, é ter acesso imediato a praticamente tudo que está sendo pensado sobre o tema histórica e geograficamente. Utilizar os algoritmos para o encontro de resultados, ou mesmo usar o “esqueleto” inicial de um produtor de textos para imprimir nele suas referências e sua autoria são instrumentos legítimos na produção intelectual contemporânea. A genialidade dos grandes cientistas persiste, mas um número cada vez maior de pessoas produz ciência, conteúdo e informação, porém, nenhuma tecnologia é criativa e produtora de conhecimento. Os ganhos com o mundo digitalizado não são sem consequências negativas no processo de subjetivação de uma criança e de um adolescente, ou seja, seu uso exige limite, controle e manejo das famílias e dos educadores. É preciso preparar o jovem para viver no real de sua existência e hoje isso passa também pelo manejo da tecnologia digital, mas não se deve entrega-lo à própria sorte, esperando que ele mesmo estabeleça os mecanismos regulatórios e éticos no limite do uso dessa tecnologia.

No Brasil, durante a pandemia de Covid-19 entre os anos de 2020 e 2021, o uso de tecnologias digitais permitiu a existência de relações sociais e afetivas para além dos moradores de uma casa e permitiu à escola manter processos formais de escolarização, mesmo com crianças da mais tenra idade. Para além disso, permitiu também a alienação, o anestesiamento e a quietude do corpo necessários para que se tornasse suportável tanto tempo retido em espaços limitados, com relacionamentos físicos tão restritos e com a morte de centenas de milhares de pessoas assustando e enlutando a sociedade. Vimos um aumento exponencial e generalizado das adicções relacionadas ao uso de ferramentas digitais e conectividade, o aumento drástico das manifestações ansiosas e depressivas, a redução do limiar de tolerância à frustração, o fortalecimento do narcisismo, do comportamento antissocial e a geração da maior onda de medicalização da infância e da adolescência já vista em nosso país.

A pandemia também exigiu das escolas, dos educadores e dos professores o desenvolvimento recorde de estratégias didáticas baseadas em ferramentas tecnológicas, a aprendizagem e desenvolvimento de sequências didáticas mais apropriadas ao contexto, assim como a produção de novas ferramentas de avaliação. O resultado é que no retorno ao ensino presencial tivemos uma equipe esgotada pelo cansaço e desejante por poder voltar a utilizar as ferramentas para as quais está treinada e tem domínio e um alunado viciado em tecnologia, impaciente, intolerante, sem traquejo social e sem reconhecimento das regras que regem o espaço público que é a escola. A cereja do bolo, me permitindo um gracejo, foi a invasão que a escola fez na vida privada das famílias e a consequente indiferenciação nos limites da intervenção dos pais na escola.

Talvez a resposta para a pergunta inicial desse artigo seja que não é possível, nem desejável, abolir as ferramentas digitais da sala de aula, mas sim incorporá-las através de uma mudança drástica de paradigma educacional. Não é mais necessário que educadores e professores tenham as respostas para as perguntas dos alunos, isso já se sabe, mas é indispensável que aprendam a elaborar novas perguntas, mais críticas, mais instigantes, mais envolventes e que possam contar com as ferramentas digitais para serem solucionadas. Esse é o aspecto, moderno, arejado, produtor da crítica contemporânea e dos projetos futuros. Porém, também é indispensável que a escola promova a tradição, porque ao mesmo tempo que a tecnologia agiliza processos (como os cálculos, ou a produção de textos esqueléticos e genéricos), ela faz com que o aluno não desenvolva suas próprias habilidades de cálculo, interpretação e produção textual, além de não desenvolver sua memória, nem sua linguagem.

É preciso ouvir, dizer, pensar, calcular, ler livros e escrever a mão, ou seja, abarcar as tecnologias, sem, no entanto, abrir mão da formação intelectual do aluno, caso contrário produziremos bons usuários de ferramentas digitais, mas teremos muita dificuldade com uma geração de sujeitos acríticos, não criativos, não tolerantes e não respeitosos dos laços sociais, incapazes, portanto, de suportar os desafios inerentes à construção de novos paradigmas sociais mais humanizados e de avanços tecnológicos comprometidos com a saúde e o meio ambiente.

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1911/1913). Os dois princípios do funcionamento mental. In. Obras Psicológicas Completas. Volume XII. Imago Editora, 2002.

 

GIORGION, Mariana de Campos Pereira. Na trilha do desejo. O diagnóstico da subjetividade no Ensino Fundamental. Tese de Doutorado. FE/USP. 2012. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-14052018-143527/pt-br.php

 

MONTERO, Rosa Maria. A Louca da casa. Ediouro, 2004.

 

SANTI, Pedro. A mente hiperconectada. Curso Online. Casa do Saber, 2020. Disponível em: https://ondemand.casadosaber.com.br/curso/57/a-mente-hiperconectada. Acesso em: 10/03/2023

 


Segue link do artigo publicado no linkedim


https://www.linkedin.com/posts/marianagiorgion-78652455_segue-uma-reflex%C3%A3o-n%C3%A3o-t%C3%A3o-breve-sobre-activity-7040022272589348864-eRiZ?utm_source=share&utm_medium=member_desktop

 

O contexto do não texto. Campos relacionais de pais e escola

7 março, 2023

Há 11 anos eu defendia minha dissertação de mestrado com a pesquisa sobre a relação entre os pais e a escola de crianças com dificuldades de alfabetização. O tema é ainda mais atual no contexto pós-pandemia, no qual o ensino remoto derrubou os muros entre o universo público da escola e o universo privado da família, trazendo consequências ainda não estimáveis para a educação.



 

Isso também vai passar?

3 março, 2023

Vai, mas deixará marcas em nossa existência. Ilustremos com um conto:

“Era uma vez um rei que disse aos sábios da corte:

– Estou fabricando um precioso anel. Adquiri um dos melhores diamantes possíveis. Quero esconder dentro do anel uma mensagem que possa me ajudar em momentos de desespero total e que ajude meus herdeiros e os herdeiros de meus herdeiros para sempre. Tem que ser uma mensagem pequena, que caiba debaixo do diamante do anel.

Todos que escutaram eram sábios, eruditos, que poderiam escrever grandes tratados, mas, uma mensagem com não mais de duas ou três palavras que pudessem ajudar em momentos difíceis…

Eles pensaram, procuraram em livros, mas não puderam achar nada.

O rei tinha um velho criado que também tinha sido criado de seu pai. A mãe do rei morreu cedo e este criado havia cuidado dele, então era tratado como se fosse da família. O rei sentia um imenso respeito pelo velho homem, de forma que também o consultou. E este lhe falou:

– Não sou sábio, nem erudito, nem um acadêmico, mas conheço uma mensagem. Durante minha vida no palácio, conheci todos os tipos de pessoas e, em uma ocasião, conheci um místico. Era convidado de seu pai e estava a seu serviço. Quando, com gesto de agradecimento deu-me esta mensagem, o velho homem escreveu em um pequeno papel, dobrou e entregou ao rei. _ “Mas não leia.” – Disse ele – “Mantenha-o escondido no anel, somente abra quando não tiver outra saída”.

Esse momento não tardou a chegar. O seu Reino foi invadido e o rei perdeu a batalha. Estava escapando em seu cavalo e seus inimigos o perseguiam. Estava só, e seus perseguidores eram muitos. Chegou em um lugar onde o caminho havia acabado, totalmente sem saída. Na frente havia um precipício com um vale profundo, cair seria o fim. Não podia voltar, porque o inimigo havia fechado o caminho. Já se podia ouvir o barulho dos cavalos. Não podia continuar e não havia outro caminho.

De repente lembrou-se do anel. Abriu-o, tirou o papel e lá encontrou a mensagem pequena, tremendamente valiosa, que, simplesmente, dizia:

“Isto também passará”.

Enquanto lia a mensagem, sentia que caía sobre ele um silêncio. Os inimigos que o perseguiam deveriam ter se perdido na floresta ou se enganado de caminho. O certo é que pouco a pouco deixou de escutar os cavalos.

O rei sentia-se profundamente grato ao criado e ao místico desconhecido. Aquelas palavras eram milagrosas. Dobrou o papel, pôs novamente no anel, juntou seus exércitos e reconquistou o Reino.

No dia em que entrou novamente vitorioso no palácio, tinha uma grande celebração, com músicas, danças… e ele sentia muito orgulho de si mesmo.

O velho criado estava ao seu lado na carruagem e falou:

– Este momento também é adequado, olhe novamente para a mensagem.

– Por quê? Agora eu sou vitorioso, as pessoas celebram minha volta, eu não estou desesperado, não estou em uma situação sem saída.

– Escute-me – disse o velho criado – “Esta mensagem não é só para situações desesperadoras, mas também prazerosas. Não é só para quando estiver derrotado, mas para quando estiver vitorioso. Não só para quando for o último, mas para quando for o primeiro”.

O rei abriu o anel e leu a mensagem:

“Isto também passará”.

Novamente sentia a mesma coisa, o mesmo silêncio em meio a multidão que celebrava e dançava, mas o orgulho e o ego haviam desaparecido. O rei pôde compreender a mensagem. Tinha sido iluminado.

Então o velho homem falou:

– Recorda-se de tudo o que você passou? Nenhuma coisa ou emoção é permanente. Como o dia e a noite, há momentos de felicidades e momentos de tristezas. Aceite-os como parte natural das coisas, porque eles fazem parte da natureza de sua vida”.1

Mas então... tudo passa mesmo?

Passa, mas deixa marcas em nosso inconsciente, determinando nossa forma de interpretar a experiência. É através da memória, das marcas da vida, que se configura nossa existência, porém, a memória que nomeamos como nossa não se constitui como um registro linear de estímulos, dados e acontecimentos, e sim pela narrativa que construídos, a partir dos enlaces, ou nós, que nossas vivências compõem, de maneira que nós inventamos nossas lembranças.

Podemos compreender a memória como marca da subjetividade que nos representa no mundo, porque é através dos relacionamentos que temos (especialmente com aqueles que cumpriram, ou cumprem, as funções maternas e paternas em nossa vida e das transferências que daí se resultam em nossos relacionamentos futuros), das ideias afetadas por sentimentos, das atitudes que tomamos, das ocorrências em nossa vida e das reflexões que fazemos, que estabelecemos as referências que marcam nossa memória, transformando a passagem do tempo em uma circunstância ordenada, porém muito mais alicerçada no universo fantasmático, imaginário, causal, atemporal e inconsciente, do que no real da vida.

Na experiência psicanalítica temos a oportunidade de reviver e repensar nossas marcas subjetivas, podendo desatar nós, recontar histórias, desatrelar sentidos e afetos, enfim, olhar de uma forma diferente, o que nos permite reconstituir nosso próprio passado e, por consequência, nosso presente e futuro.

1TAHAN, Malba. O conto. Disponível em: https://malbatahan.com.br/isso-tambem-passara-palavras-muito-atuais/. Acesso em: 17/02/2023

 

Prismas da subjetividade

22 fevereiro, 2023

Como nos aproximarmos de nossa subjetividade?

 

Ao termo subjetivo são reservados os campos submersos, opacos e obscuros do humano e das relações sociais. Quando se diz que algo é subjetivo pode-se alegar que faz parte de um campo não francamente compartilhado, não explicitado e quiçá, não confiável. Mas são de subjetividades que somos feitos, porque subjetivas são nossas relações afetivas e sociais, subjetivos são nossos processos de aprendizagem formal e informal e subjetivos são os nossos sentidos. Também são subjetivas as interpretações que fazemos das nossas experiências do passado e do presente, que, enredadas pela memória, vão apontando perspectivas futuras. Subjetivas são as linguagens que as diversas culturas desenvolveram para nomear e comunicar o que entendem como realidade, ou o possível de se apreender do mundo, da natureza, da sociedade, do corpo e do próprio psiquismo.

É desse campo subjetivo singular que nos aproximamos no trabalho psicanalítico. A ideia é que juntos, psicanalista e paciente, estejam intimamente em conexão com as vivências que compõem o “eu”, na busca pela compreensão, conciliação e mais especialmente dos movimentos possíveis que direcionam o futuro, a partir da própria reinterpretação do passado e do presente.

Esse percurso se inicia com um diagnóstico que consideramos interventivo. Na psicanálise é através da palavra livre do paciente e da atenção flutuante do profissional que se constrói um olhar que detecte as diversas formas possíveis de se vincular ao mundo e ao outro.

Para quem chega, o diagnóstico permite o acolhimento inicial indispensável para o estabelecimento do vínculo. Seu nome, sua história pessoal e familiar, seu repertório de conhecimento, suas formas privilegiadas de ser e estar, sua representação de mundo e suas expectativas iniciais sobre o processo terapêutico são exemplos de questões que contribuem para o diagnóstico da sua subjetividade ainda no início de seu processo psicanalítico. O diagnóstico é uma recepção, um acolhimento, um interesse primordial do terapeuta por você. Esse olhar tem seus métodos, mas sua maior contribuição é permitir o seu desvendar, contribuindo para uma maior fluência dos roteiros que você se propõe.

Na clínica psicanalítica o diagnóstico e a intervenção ocorrem simultaneamente. Se em algum momento concluirmos juntos que você está, nesse momento, confiante de uma certa autonomia no seu percurso, se você, como disse Freud1, se sente capaz de amar e trabalhar, encerramos nossos encontros até que você deseje um novo processo. Mas, diante do enrijecimento sintomático de nossas formas de sentir, interpretar e existir - e todos enfrentamos dificuldades de natureza diversas em vários momentos da vida -, podemos seguir aprofundando nossa investigação, para que você possa viver suas experiências com mais leveza, menos dependência emocional e sofrimento psíquico.

 

1FREUD, Sigmund (1914). Introdução ao Narcisismo. In: Obras Psicológicas Completas, volume XIV. Editora Imago, Rio de Janeiro, 1996.